CONT +! Cinco quadras
Fonte: http://www.flickr.com/search/?q=morte&z=e
Andar cinco quadras para entrar no vácuo, no vazio. Muito distante, como se fosse um oceano, um Himalaia a ser escalado, uma selva a ser desbravada, um tempo a ser consumido, um leque de possibilidades, mas apenas uma certeza. Cinco quadras e muito a ser dito, possivelmente bem mais do que eu gostaria e bem menos do que o necessário; meia quadra já havia sido consumida. Andava lentamente, porque os passos pesavam como chumbo. Temas, assuntos, detalhes, marchas, contramarchas mas, sobretudo, culpa. A tríade de olhos verdes: culpa, responsabilidade e erro. Sempre, todas elas palavras muito densas. Culpa, nossa orientadora mor, moedora emérita de nossos sonhos, a culpa é a proteladora do prazer individual, o motivo pelo qual abrimos mão de nossos desejos, por mais eles nos atormentem. Colocar em um mesmo cadinho a culpa, a responsabilidade e o erro e, daí, sorvê-los cuidadosamente, em doses quase homeopáticas mas constantes ao longo de nossa vida é o caminho mais certo para a mortificação.
Essa foi uma das lições que aprendi ao andar cinco quadras. Durante minha vida, que cada vez mais se encontra à disposição do tempo, como um caleidoscópio, nada me pareceu tão evidente. Foi como se um insight me atingisse; eu, que havia tanto me dedicado à tríade, iria repartir, compartilhar minha descoberta com quem? Quem haveria de sentar-se comigo, de ouvir-me, de prestar atenção ao que eu poderia dizer? Quem teria a inegável paciencia de me escutar, entre o meu vício tabagista e os vapores de um vinho cabernet?
(Estranho, nesse momento de angústia, me lembrar do sabor de um cabernet, quase como se estivesse em Quaraí, no rigor do inverno com meu pai, comemorando o resultado de uma charqueada. Me transportei, alma, sentidos, de maneira tão rápida que me pareceu ter ouvido a risada clara de meu pai, junto às discreções de minha mãe, enquanto o vento varria tudo, especialmente as consciências políticas, nos deixando sem assunto mas, de certo modo, felizes. Nesses momentos, nada melhor que um cabernet, o pinhão sendo assado no forno à lenha…)
Faltavam duas quadras. Novamente a tríade me envolveu. Para mim, tinha olhos verdes, olhos que, segundo aprendi, são inconfiáveis, traidores… no entanto, Clarice tinha olhos verdes, e me foi fiel desde que a conheci, mesmo quando soube o que eu deliberadamente tentava ocultar, e em um dezesseis de julho, finalmente cansou, extenuada de minhas tolices. ” Vou partir, e não me verás mais”, foi o que disse, e assim foi feito, se foram os olhos que me encantavam, os olhos que desperdicei, o que tinha de melhor e que consegui arrancar de mim mesmo. Uma quadra. O vento varria tudo, o frio ficava por ali, condensando o brilho das lâmpadas a vapor, acompanhadas nostalgicamente por alguns vagalumes, insetos ordinários, e pelo silêncio. Acho que quando morrer, ingressarei em uma camara absolutamente silente, até que a loucura plena me arraste. Tenho comigo que morrer é não escutar o algaravio das crianças, o berro do boi, os murmúrios dos amantes, os barulhos do mundo; morrer é ser engolfado pelo silêncio.
Acabaram-se as quadras, as cinco. Bati à porta, e alguém me atendeu, para que eu pudesse contemplar, em um caixão, em uma mortalha, os olhos castanhos de minha filha que me esperavam, mortos, translúcidos, olhos de peixe, sem esperança. Quando entrei, algo deixou de existir. Desolado, suando a transpiração úmida da escuridão, entrei. “Escute!”, pensei mas não disse “Alguém gritou algo na rua!”, mas não entendi o que havia sido gritado. Parei um pouco dentro da casa, meus pés já haviam abandonado completamente a velha soleira. Quando dei por conta, o mundo sumiu.