Bem querer
Crianças brincando a brincadeira de brincar
Relva, planície, nuvem e sol
Remanso, paz, desejo, sentidos, raízes,
Sonhos, poesias quintanares
Iluminadas madrugadas dos mares teus
Bem querer
Crianças brincando a brincadeira de brincar
Relva, planície, nuvem e sol
Remanso, paz, desejo, sentidos, raízes,
Sonhos, poesias quintanares
Iluminadas madrugadas dos mares teus
Paranjana, Café Viena, Trianon,
Estação Paraíso, Cumbuco, Terra do Sol
Fortaleza, São Paulo, Porto Alegre,
Caranguejo, Papicu, Canoa Quebrada
Avenida Paulista, Avenida São João (metrô)
Caldo de peixe, São Manoel, Aracati,
Redinha, Santana, Capitão Mostarda,
Cultura Quintana e Dragão do Mar
Bibi Ferreira, Marisa Monte, Gullar (Ponte Metálica)
Salgado Filho, Morada D’Aldeia, Aldeota, Beira Mar,
Sebastião Salgado, Masp, polpa de fruta, teu olhar
Cajarosca, Seis Bocas e Jeri,
Estação Ana Rosa, Bar do Pirata, Kandinsky (sapoti)
Praia das Fontes, Falésias, Lagoa Azul
Oliveira Paiva, Iepro, Mel de Caju
Silvia, Scheilla, Lila, Carlos, Rebecca, Maninho,
Avenida Ipiranga, Protásio Alves, Buffet de sopa (carne de pitanga)
Praça do Oliveira, calor, sorvetes de cajá
Maça, uvinha e melão
Café da manhã, Praia do Futuro, Iracema, Mazé
Dona Nenzinha, Vinícius, Caetano e Djavan
Teus olhos, teu corpo, tua voz avelã
Águas
Águas são rios e oceanos,
nuvens e corredeiras.
Também percorro sinuosos caminhos entre margens
(aprisionantes).
Guardo os peixes e suas escamas,
mas nunca possuí arraias ou jubartes
e agora, breve chuva,
deslizo sobre teu corpo…
Estou com a cabeça no mundo, estou vendo quantos quilômetros ainda tem na minha frente até que possa encontrar, entre outras pessoas, aquela que eu amo. Estou rodando há um bom tempo, talvez umas seis horas ou sete, parece que o tempo dilatou de uma tal forma que me tornei apenas um ponto que se move lentamente entre o que fui e o que pretendo ser. O amor me leva, o amor me guia, o amor balança o meu caminho. De quando em quando paro, descanso um pouco, mas sei até onde quero ir, embora não saiba exatamente quando vou chegar. Sou um pixel se movendo lentamente pelo computador, sou um barco meio sem rumo, me guiando pelo sol e pela lua, com um astrolábio que, no mínimo, é imperfeito.
Os ventos que me levam adiante também me obstaculizam o caminho. Eles são assim, muitas vezes contrários ao desejo. Ventos atrapalham, ventos auxiliam, enfim, são apenas naturais.
Eu, não, eu não sou um ser natural, não me sinto assim porque me correm urbanidades pelas veias. Sou absolutamente contraditório.
Enquanto o vento aponta para uma direção, me comporto como o bombordo de um navio, como uma caliça em meio a uma avenida. Inapropriado, é o que eu sou. Somente o meu amor pode me resgatar, livrar-me de mim mesmo, fazer com que eu me esqueça da minha imagem, das minhas batalhas, das minhas já obtusas memórias.
Desperto em mim mesmo a fuga do meu corpo. Não sou o meu corpo, mais, sou apenas e tão-só desejo, vontade, determinação. Meu amor me guia, mas não apenas; ele me transforma talvez em alguém que eu desconheça na plenitude. O amor me resgata de mim mesmo, me faz crer mais no sol do que na escuridão, mais na justiça que na miséria, mais na luz do que no deserto. Amo o meu amor, o meu amor é minha vida, é tudo o que eu tenho. Sou obscessivo, sou primata, sou intensamente espírito e carne. Comando a mim mesmo dentro de minha loucura e de minha solidão.
Só o amor resgata, só perto dele posso, nem que seja por breves instantes, ser o que realmente penso que sou. Sou uma sombra que caminha infinitamente em torno de meu desejo. Como eu disse, e você sabe, só o amor salva!
Boate barata,
Sentimentos deslizando,
Poemas se consumindo em vermelho
Papel machê e ilusões kabuki dançam sobre teus seios
Numa boate barata de Moscou.
Após vinte e cinco anos, João decidiu terminar seu casamento quando uma voz feminina lhe falou, ao telefone, que sabia “das aventuras de sua mulher Beatriz”. Ora, após tanto tempo de convívio, e considerando os últimos quatro anos, ele sabia que nada mais restava das promessas e da vida amorosa com que ambos haviam iniciado a vida em comum. Mais do que romance, havia tão-só lembranças, algumas felizes, outras nem tanto e que se foram perdendo no tempo, mas não muito mais que isso. Não tinham filhos, e Beatriz sempre sofrera com isso, especialmente tendo certeza de que João, de modo velado, a responsabilizava, ela, uma “mulher seca por dentro”, como sua sogra dizia, de quando em quando, de modo tão cruel. A vida entre ambos se arrastava de maneira monocórdia, dia após dia como a rotação da Terra. Dias, invernos, primaveras, noites se passavam, enquanto ambos aceitavam tacitamente administrar o papel de casados, sem qualquer emoção ou sentido. Portanto, pouco importava ao marido que ela possuísse algum amante, de quando em quando. Afinal, ela era ainda uma mulher bastante atraente, mas entre ambos se estabelecera um triste pacto de licenciosidade. A questão que abalara João após o telefonema não demandava sentimentos, longe disso.
Durante a vida em comum, ambos haviam amealhado uma considerável carta de bens, entre os quais se incluíam créditos, uma distribuidora de medicamentos, imóveis, ações na bolsa de valores, propriedades. Era impossível, portanto, que ele não se houvesse tocado com a possibilidade de ver sua imagem degradada publicamente ou ainda de ser vítima de chantagem. Afinal, era um empresário famoso, e as relações comerciais não se comoveriam com deslizes eróticos, sempre haveria prejuízos de todas as ordens. Naquela noite decidiu que iria agir. Seu amigo Carlos E. M, em Porto Alegre já havia passado por tal situação. Na mesma noite ligou para Guarulhos e reservou uma passagem somente de ida para o sul. Lá, poderia engendrar um plano. Nos próximos dias, pouco falou com Beatriz, ficando bem mais tempo na rua do que na casa de quase quatrocentos metros quadrados.
Beatriz notou: havia silêncios e reticências quase que palpáveis, que se esvaíam ante a negativa da conversa, ante a esquiva do que falar. Na noite de quarta-feira, quando voltou à casa, após ter inutilmente tentado fazer compras em um shopping qualquer e com uma sensação intuitiva que lhe alertava os sentidos, encontrou um bilhete. ” Vou para Porto Alegre encontrar com o Carlos. Devo voltar na semana que vem”. Um bilhete seco e definitivo. As roupas que habitualmente João levava quando em viagem, não estavam no armário: dois ternos completos, dois pares de gravata, duas calças, quatro camisas sociais, duas polo, dois pares de sapato, quatro pares de meias. João adorava o número dois e seus múltiplos. Um marido previsível.
Minutos depois, Beatriz descobriu o horário do vôo e a companhia aérea. Ligou do celular para João e guardou-o na bolsa. Ainda tinha pelo menos três horas pela frente.
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Havia muitas pessoas no enterro de João; era quinze de julho e o frio havia invadido São Paulo fazia uma semana. Frio sem garoa, seco. Beatriz era a face do desconsolo: a morte do marido ocorrera justo quando estavam em uma fase tranqüila da vida, com uma situação financeira bastante sólida. Os que compareceram ao enterro admiravam intensamente o equilíbrio do casal e o patrimônio que construíram. Infelizmente, a vida era assim, injusta, talvez cruel. João tinha sido atropelado quando atravessava a Rio Branco, duas horas antes da viagem para Porto Alegre. Compareceram muitos, alguns por interesse, outros por estratégia comercial, terceiros ainda porque amigos, esses em menor número. Durante a cerimônia, a viúva se aproximou de sua prima Clara e, abraçando-a, sussurrou-lhe: “Cuidado com o que você faz, e especialmente com o que você diz”. Clara empalideceu, enquanto Beatriz se afastava. Algumas pessoas notaram o constrangimento da última, mas não quiseram aproximar-se, menos ainda indagar o que houvera.
Quatro horas depois, Beatriz voltou para casa. Deixou-se relaxar em um dos chaise longer da sala por um bom tempo, até que ingressou em um sonho um tanto quanto agitado. Ao acordar, a noite já tomara conta de tudo. Acendeu as luzes, ligou Gotan Project, selecionou Santa Maria del Buen Aire. Foi à cozinha e agradeceu à si mesma por ter dispensado os serviçais, enquanto bebia um pouco de soda com gelo. Quando a voz de Julieta Venegas invadiu o ambiente, abriu a torneira da ducha elétrica e banhou-se, antes tomando a providência de desligar todos os telefones. Finalmente estava em paz, quase feliz.
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Quando o telefone soou no apartamento 501 do prédio classe média da avenida Bastian, em Porto Alegre, Carla desligou o aparelho de som. A ligação era de algum telefone público, pelo chiado característico e pelo ruído inconfundível do trânsito. A empregada estava mais era pensando no dia seguinte, quando iria finalmente se encontrar com o Ribeiro, que a estava rondando desde há muito. “Não, o Dr. Carlos viajou, está em Tupanciretã, tratando de negócios, deve voltar na sexta-feira”, disse para a voz masculina. Dada a informação, perguntou quem estava falando, mas, fosse quem fosse, já havia desligado.
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O celular de Beatriz tocou intensamente, por várias vezes, até que João atendeu. Foi ríspido, não queria conversa. “Já disse que estou no aeroporto!’. Ía desligando quando ela avisou que a sogra tinha sofrido um atropelamento e estava internada no Sírio Libanês. ”A mãe foi atropelada?” “E não está nada bem, já estou com ela aqui”. Beatriz falava nervosamente, a voz atropelando sílabas. “Inferno!” pensou João. “Está bem, estou indo”, foi o que disse. Enquanto a voz monocórdia pedia para que “os passageiros do vôo WYU 457678 com destino a Porto Alegre e escala em Florianópolis se dirigissem ao portão dois de embarque de voos domésticos”, João se encontrava, veloz, na direção do hospital. Prevendo a perda do vôo, João jogou sua maleta de executivo no banco traseiro do automóvel.
……………………………………
Tudo aconteceu de modo tão lento…. João encontrando-a em frente ao hospital, ela chorando de modo incontrolável, guiando-o para próximo à calçada, ele querendo entrar para saber de sua mãe e, de repente, em um gesto absolutamente casual, meticulosamente calculado, o pé dela cria uma alavanca e o empurra com um gesto de causalidade imperceptível, de tal modo que ele desaba, pesado, em meio ao trânsito da Rua Dona Adma Jafet, para ser colhido por um Gol que trafegava em alta velocidade e que o joga com extrema violência sob a calçada, enquanto desaparece dobrando à direita na Rua Dr. Marco Antonio de Oliveira. Beatriz se agacha, põe as mãos nos bolsos do marido, recolhe seu celular, com a mão envolta em um lenço, e entra chorando e aos gritos no Hospital. O marido fora atropelado. Correm médicos, tentam reanimá-lo, trazê-lo à vida, mas nada podem fazer. O afundamento do crânio era evidente e tudo, de repente, se transformara em um mar de sangue. Se João sobrevivesse, diriam dali há tempos para Beatriz, sua vida seria vegetativa, totalmente dependente dela e de seus cuidados.
Parentes e amigos acorrem ao Sírio Libanês. Daí por diante tudo se passaria como em um sonho, até o momento em que Beatriz, finalmente afunda na cama do casal. Antes de mergulhar no sono, olha a maleta de executivo de João e diz: “Amanhã, como cuidei dele, cuidarei de você…”
O mundo social, econômico, financeiro, cultural, as religiões, as relações políticas, amorosas, educacionais, o imaterial, a razão e as porcentagens, as virtudes, os vícios, as obrigações, as medicinas, as doenças, os sentidos, os direitos e as obrigações, os signos, a semiótica, a literatura, a imagem em milhões, em bilhões, incontáveis imagens, as palavras, as filosofias e as ciências, a pornografia, os sentimentos, os ressentimentos e as apatias, o desanimo, os crimes, as abluções, o néocortex, a apatia, o desanimo, os aparelhos de repressão, a polícia, os céus, a tecnologia, os meios, as avenidas, as ruas, as vielas, os acessos, as pontes, os mendigos, a sacristia, as cidades, vilas, os governos, o ócio, as cautelas, os jogos, os erotismos, os templos, os templários, as publicações, os livros, os livretos, os transtornos, as hipóteses, os créditos, as redes, os conhecimentos, as escolas, as igrejas, tudo, tudo absolutamente ficou em stand by.
Nasci, mas isso não foi notado, ninguém, a não ser parentes, e desses muitos poucos notaram que eu nasci, para continuar, já tão sem nada a aprender. Há pais, há um mundo a ser descoberto. Um pouco acima, um pouco abaixo, parte dele, ao seu lado, mamar, prazer, frio, desprazer, calor em excesso, ver, olhos, reconhecer. Nasci, e comigo e em mim, tão envolto em mim, mantas e mantas de imprinting cultural, id, ego, superego talvez, desvios, más experiências, bullying, mais tarde, escola mais tarde, humilhações dos pais, da mãe, o pai tão bebado dizendo filhinho, filhinho, filhinho, os sentidos, paladar, visão, olfato, e talvez por uma certa orientação, esquerda, direita, embaixo, ao lado, diagonal, transversal, e, pronto, os alimentos, a gordura gordura se acumulando junto com a rejeição, ninguém quer, quem orienta, ods elevadores, os plásticos, as dores, as tristezas, os ventiladores e as melancolias; não, o mundo não é plano, o mundo não é justo, de repente nos perdemos entre pessoas escusas, contraditórias, más, eu então me tatuei de raiva, de puro ódio, essa é a verdade, que já era mais que adolescente quando me tatuei para me esquecer, e é muito estranho tentar esquecer a própria vida, eu queria e ela me tomou, minha vida de neón, tudo mentira, eu sou uma mentira.
Tenho agora comigo, em minha pele, gravado em mim, no dorso da minha mão, um dragão medieval, e quando movo a minha mão ele também se move e ela nada mais é do que um instrumento, uma ferramenta, meus dedos um display que aciono do modo e da maneira que desejo e que meu neocortex, topo da minha cabeça ordena, requer, necessita, enquanto ele, o dragão aponta sua bocarra de poros e de humores para o meu indicador e daí vem a sua força, o seu fogo destruidor, o seu movimento e a minha raiva, minha incontida raiva virada em facas, adagas, lâminas, cortes obtusos, cortes perfeitos, gilettes restaurando a doutrina que dispara contra o metrô, contra as instituições e risca e rasga e fere, o que mais queriam de mim, pergunto e todos ficam iguais a você, aí, parados e ninguém diz nada, então eu avanço, eu agora sou o dragão, forte, contra os prevaricadores, as prostitutas, os guardiães das delegacias, os velhos que cheiram mal, os mentirosos de profissão, venho eu com a força do fogo, com o corte da lâmina, o fogo que provêm da minha vontade de limpar, clarificar, iridescer como um jato de sol aquece o limo, como o fogo aquece a manhã; afogará, o fogo do meu dragão, de suas entranhas as mentes preguiçosas, ensimesmadas, cautelosos, anárquicas, tudo e tudo mais que deva ser silenciado o será através do sílex branco, duro e limpo do fogo, e eu serei, como meu corpo é seu mensageiro, homem-dragão mensageiro, santíssima trindade e digam amem amem amem, e a tatuagem meu deus, deus de letras minúsculas e me ajoelharei para louvar, santificada a trindade fogo, terra, pureza, da qual sou apenas e tão-só pastor que uniformiza, que normaliza e normatiza a casta neurose dos homens, filhos todos do dragão, e assim será e por isso e tão-só para isso estou no mundo e quando eu morrer, me for, hordas me seguirão.