Falo com tudo, mas não com todos. Converso com as minhas recordações, são várias, discuto com meus alimentos, sussuro às minhas carências, esbravejo com os meus dinheiros, reflito com os meus desejos, me calo ante você. É estranho, ficar mudo, quieto, ante você. Talvez por isso minha presença seja tão miúda, tão parca e, assim, você não me veja. Falo com você, mas não a você,e porque nunca fui muito bem com as palavras, sempre que nos falamos, resta em mim a idéia de que não consegui expressar o que queria, um inadequado, um inconveniente, em suma. E assim se passou um tempo mais do que necessário para que efetivamente você me visse além do que eu gostaria que tanto ocorresse.
Há um tempo para tudo, e quando plantamos em nós mesmos uma semente, não podemos, de sã consciência, responsabilizar o outro por não participar do crescimento do que desejávamos. Não há qualquer linha de argumento que seja possível quando não somos reconhecidos pelo nosso discurso, e a impressão geral é a do vazio, da coisa oca, da palavra e das frases sem qualquer repercussão real, então não posso culpá-la de absolutamente nada. Refugio-me então no que me dá acolhida, vivo no mundo das coisas, na materialidade do que é palpável, consumível, e, embora tristemente, descartável. Quase nada em mim é real, pertenço a um mundo que se abriga no que possa vestir, usar, e meu temor maior é a própria exposição; pensar que terceiros possam ter acesso ao que sou e ao que penso me deixa desconfortável, como um bicho perseguido por caçadores. Eu, a caça em relação ao mundo, queria ser caçador em relação a você.
Tenho uma inapetência que se traduz no meu imobilismo. Vivo só, encarcerado em minhas coisas, e a palavra não pode suportar somente isso. Palavras são para formar frases com sentido, coerentes, são pontes de ligação entre nós e os outros, e as minhas palavras, já se cansaram de me ensinar o caminho, de me orientar em busca de algo que vá além do medo da recusa. Quero amar e não consigo, quero ser amado e não me esforço para isso. Recolhi-me ao estreito mundo das causalidades, das conveniências, de um devir sempre postergado, e permiti tanto à inação que sou uma enciclopédia viva de descontinuidades, de idas e voltas, em passos de bebado. Sou um slow motion que já se tornou velho e embolorado por vontade própria; assim, não podes reconhecer-me, pelo menos não mais do que alguém que desconheças. Me dói ser apenas uma tênue imagem desbotadamente precoce dos meus sonhos, mas não me debato mais com isso.
Sou banal, asséptico, quase um perpetuum mobile. Abasteço-me do que já possuo, e minhas pretenções passam longe da cobiça. Não sou um predador social, não sou um vencedor e as minhas fronteiras não transbordam do relativo, do esperado, do previsível; a incerteza me dilacera, o destemperamento me corrói, o provisório me assusta. Estou aqui novamente escrevendo o que não consigo fazer entender através da minha fala, e se me calo ante seus olhos e se me vergo ante a tua boca, é porque de ti transbordam todas as luzes e as belezas que em mim adquirem o tom exótico de uma guitarra guitana. O tempo vai passar, eu sei que vou me arrepender, e sei que correrei a um shopping, a uma dessas tão atentas e misericordiosas profissionais do prazer, aos bares e botecos para tentar esconder-me, senão da tua presença, da tua lembrança. O céu hoje está de um castanho acinzentado, prenúncia da chuva que me irrigará de dor, e não parece haver melhor retrato para o que sinto. Os prazos se esgotaram.
Minhas pernas e mente transitam entre o mundo e o meu apartamento, entre o real e o patético. Abro uma garrafa de vinho, mas ele sabe a um líquido viscoso. O dia escorre como uma água entre as palmas das mãos, e se lacra sobre meu corpo. Enquanto isso, converso com tudo, menos com você.