Escritos para você

03
Abr 12

SIAMO TUTTI FENICE

 

Um textinho meu, depois de uma noite kafkaniana! Beijos a todos. Ana

 

 

 Siamo tutti Fenice

 


 Ana Boff de Godoy

 

 

 

Sempre fui fascinada pelo mito de Fênix. Esse mito (que sempre se teve por grego, mas que hoje se atribui originariamente aos egípcios) fala de uma ave de fogo, do tamanho de uma águia e com uma força enorme, capaz de carregar até mesmo um elefante. Mas não é sua força o que mais costuma impressionar e sim o fato de ela, ao morrer, entrar em um processo de auto-combustão e, depois, simplesmente ressurgir das próprias cinzas. Alguns autores gregos diziam que isso ocorria em intervalos exatos de 500 anos; outros, que cada ciclo de vida da Fênix durava exatamente 97.200 anos. Eu prefiro acreditar que o ciclo de vida dela era variável e que ela se auto-consumia quando estava de saco cheio de viver aquela mesma vidinha.

 

Assim como sol se levanta a cada manhã e “morre”, metaforicamente consumindo-se em si mesmo a cada fim de tarde, essa ave, ao reerguer-se de suas cinzas, levava à Cidade do Sol, e mais especificamente ao altar do Deus Sol (Hélios), os restos de sua ave progenitora, ou seja, sua mãe (ela mesma). Alguns autores dizem que era do seu pai (ele mesmo). Uma ave ou un uccello, mãe ou pai, ela mesmo ou ele mesmo… pra mim não importa o sexo do mito, importa o valor que ele me ensina e me incita.

 

Talvez pela minha própria natureza eclética, sempre tive a sorte de conviver com gente das mais variadas classes, cores, credos, gêneros e tudo mais que se possa imaginar. Transito sem problemas entre acadêmicos, catedráticos e professores mortais; entre médicos, psicólogos, freudianos, transpessoais, alopatas, homeopatas e sociopatas; entre veganos e carnívoros; entre mães, pais e filhos; entre católicos, espíritas, agnósticos, budistas e judeus; entre teatrólogos, astrólogos, historiadores, matemáticos, estancieiros, policiais, tradutores, músicos e poetas; entre gente que nunca soube o valor das coisas que tem e entre aqueles que agradecem à vida pelo simples ato de respirar; entre gente grilo muito alternativa, gente tradicional e gente muito tradicional que se acha alternativa… não daria para contabilizar todo tipo de pessoas que conheço e que respeito e admiro apesar de nem sempre (ou quase nunca) desejar me parecer com elas.

 

A questão é que, apesar de tão diversas, todas essas pessoas têm alguma coisa em comum. Assim como todas têm um coração, duas pernas, dois braços, um tronco, um cérebro, um par de olhos, enfim, coisas que as definem como tão semelhantes mas ao mesmo tempo e paradoxalmente tão diferentes, essas pessoas têm em si, todas, uma fênix. Todas carregam o gene da imortalidade e da capacidade de se autodestruir e também de se auto construir e se auto reconstruir. Todas, sem exceção. Mas claro que de maneiras, ciclos e intensidades completamente diferentes.

 

Estou numa fase dessas, ainda em combustão, ainda me desfazendo aos pedaços, ainda virando cinza. Sim, dá um certo desespero, mas como já passei por esse processo algumas vezes, a consciência de que logo virá o renascimento me dá um certo conforto. O que não me livra, de todo, da angústia… Até porque, até então, me desfazia e refazia de um aspecto de cada vez, de um “golpe” de cada vez. Dessa vez, provavelmente pra testar minha força e minha capacidade, o desmoronamento veio por completo, atingindo todas, ou quase todas, as áreas da minha vida. Refazer o corpo, a mente, as emoções, as relações, as amizades, a saúde financeira, a família e a carreira não é, definitivamente, tarefa fácil. E sim, tenho medo de não conseguir e de jogar a toalha. Mas como, agora, outras vidas dependem da minha e não quero partir sem a certeza de ter feito o melhor possível, permito que a vida continue me incitando e me impulsionando a seguir em frente, mesmo que esse seguir em frente seja ele também incerto e não sabido, assustador e carregado de possíveis expectativas frustradas.

 

Gosto muito de uma frase do Camus que diz assim: “No meio do inverno, descobri finalmente que existe em mim um invencível verão.” Isso me faz pensar que, se sempre fosse verão, nós sequer poderíamos perceber e valorizar esse verão. Ou seja, se tudo é relativo (Einstein) e se tudo é ilusão (Buddha), se não houvesse o inverno, não haveria também o verão (Sócrates). As coisas não são o que são, são aquilo que são postas em relação num determinado momento e num determinado espaço, e mesmo assim, para cada um, de cada ponto de vista, elas se apresentam como diferentes. Não é à toa que a tragédia de uns equivale à glória de outros…

 

Semana passada fui convidada a dar uma palestra sobre a Metamorfose do Kafka para um grupo de 60 adolescentes de uma escola particular. Eu não sabia muito bem que abordagem fazer, já que só tinha dado aulas de literatura na faculdade de letras, pra um público completamente diferente. Decidi, então, me deixar levar pelo que o momento me propiciasse, e foi uma verdadeira delícia. A maioria dos alunos sequer tinha conseguido chegar à metade do livro, não estava entendendo nada e diziam sentir-se oprimidos, repugnados pela leitura. Resolvi, então, ir contando a história, e ir parando aos poucos pra uma reflexão, não crítica-literária, mas filosófica – e filosófica não no sentido formal, mas prático. Vivi, naquelas duas horas de palestras, um verdadeiro momento de orgasmo intelectual com aqueles adolescentes. Vi naqueles olhinhos inquietos a curiosidade, a perplexidade e a dúvida, as molas da própria existência, latejando e vibrando numa sintonia rara e, ainda que tensa, pelo conteúdo, serena, pela descoberta. E descobri, no meu próprio discurso, uma leitura nova, não só do livro, mas da minha própria vida. Revivi o tempo em que, como aquelas crianças, li Kafka pela primeira vez e me senti confusa: primeiramente consternada com o personagem; depois revoltada pela aceitação dele mesmo para com a sua condição; depois, ainda, comovida e assustada por perceber que a aceitação de uma condição que é a antítese daquela que desejamos, é, muita vezes, o destino de muitos de nós e, pior do que isso, que todos nós, inúmeras vezes, acatamos e aceitamos essa condição porque ela nos parece a única forma possível num determinado momento… e às vezes é mesmo.

E isso não é fatalismo, é a própria condição humana, é o próprio cerne da idéia existencialista em que “só somos enquanto somos”, ou seja, em que eu só efetivamente existo enquanto produzo: relações, idéias, trabalho, dinheiro… Quando páro de produzir, já não sou. Quando páro de desempenhar alguma papel, já deixo de ser. Mas deixo de ser o quê? Para os essencialistas, continuo sendo, porque minha essência não esvaece, mas sou numa esfera que não serve à minha existência, então, eu diria que não é nada muito útil, ao menos nessa vida, nesse planeta!

 

Estamos, afinal, encapsulados num corpo físico, dependemos dele e das coisas concretas para sobreviver. Claro que só isso também não garante nossa existência. E acho que é essa nossa grande dificuldade: lidar com duas esferas de existência numa única vida. Se fôssemos só energia, seria mais fácil. Se fôssemos robôs, mais fácil ainda. Mas somos muito complexos, talvez muito mais do que gostaríamos. E não somos tão influentes sobre nós mesmos quanto gostaríamos que fôssemos. Talvez os iluminados consigam não se deixar entristecer ou se desesperar por sentimentos que sequer sabemos de onde vêm. Eu não. Por mais forte que me reconheça, por mais que pense racionalmente nas possibilidades infinitas de transformar dor em alegria, tem vezes que quero mesmo é me encarapuçar num grosso e impenetrável casco de besouro ou barata e esgotar meus últimos suspiros inerte, debaixo de um divã, como fez Gregor Samsa, protagonista desse conto de Kafka. Essa noite mesmo me senti assim, queria desaparecer embaixo do divã e não mais ter que me dar ao trabalho de, sobre ele, tentar entender a minha nada mole existência. Temos todos o direito de nos sentirmos assim. Mas isso não resolve nosso dilema existencial.

 

Esse dilema se trava não só nessa dicotomia entre essência (ou alma, ou espírito, ou energia ou o nome que se queira dar) e existência (ou relação entre coisas e seres qualquer coisa que o valha); ele se trava também no embate entre os diferentes papéis que desempenhamos e, mais do que isso, na relação entre esses papéis (nossos personagens) e nossa própria autoria. Um dos meus autores preferidos, Pirandello, ele também existencialista, mas de um existencialismo metafísico, quase mágico, descreve com maestria essa relação numa peça teatral chamada Sei personaggi in cerca d’autore (Seis personagens à procura de um autor). O título já diz tudo. Somos pais, filhos, amantes, provedores, profissionais, estudantes, amigos…somos tantos personagens, nos dividimos em tantos papéis durante o dia, durante a vida, que às vezes (ou quase sempre) perdemos a noção de quem, afinal, somos nós, quem, afinal, é o autor desses papéis, da nossa própria vida, de nós mesmos. Alguns dirão que é Deus. Como acredito que todos somos deuses e que, por isso, a responsabilidade sobre nossa existência é nossa própria, não consigo confiar a algo externo o que vejo, nitidamente, estar em mim. Claro que o externo me afeta, porque atinge meu interior. Claro que não posso controlar tudo, que não tenho ingerência sobre tudo, nem sobre todos meus sentimentos, como já me referi. Mas sou, afinal, a autora de mim mesma. Porque só cabe a mim resistir ou lutar, ignorar ou entender, aceitar ou mudar, ou tentar achar um meio-termo entre tudo isso. Ninguém vai fazer isso por mim. Às vezes não é hora de agir, de escolher. Às vezes precisamos só respirar, só sentir a vida e o entorno, para tentar entender e, aí sim, fazer as escolhas e partir para a ação.

 

Isso o personagem de Kafka não conseguiu fazer. Quando parou de desempenhar seu papel por um instante, não encontrou seu autor e se deixou sufocar pela angústia da falta. Falta de opção, de amor, de coragem, de vontade… falta dele mesmo, de uma autoria firme que escrevesse um roteiro minimamente decente para sua vida. E sucumbiu ao peso dessa angústia. Muitos sucumbem. Fênix, não; não assim.

Mesmo que as escolhas me pareçam quase impossíveis agora, mesmo que o momento esteja tão intrincado, tão emaranhado que não saiba nem por onde começar a puxar o fio, mesmo que meu coração esteja tão dilacerado a ponto de eu desejar arrancá-lo para não ter que ouvi-lo gritar, mesmo que as perspectivas não pareçam boas, uma escolha se me impõe: quero ser Gregor Samsa ou Fênix? Quero me sufocar em mim mesma e cessar minha dor, ou quero fazer arder profundamente o que ainda resta em mim e renascer com um novo rumo, com um novo sopro?

Acho que, pela nossa própria condição, às vezes optamos por sermos besouros, e isso determina nosso ser naquele momento. Outras vezes, essa escolha se repete compulsoriamente e vamos nos fixando nessa forma de ser, até que acabamos por isolar, com nossa carapaça impenetrável, as relações e os sentimentos. E vamos ficando sós, e cada vez mais sós, não vemos mais as possibilidades, e definhamos. É muito triste observar alguém que amamos, ou que amamos um dia, transformar-se em besouro. É desesperador perceber-se impotente frente a um besouro. Meu marido (agora legalmente ex) decidiu embesourar-se. Lutei durante anos contra essa sua decisão. Tentei desesperadamente nutri-lo de vida, mas isso é impossível. Não somos responsáveis pelas escolhas alheias; por mais que tenhamos vontade e empenho, só conseguimos dar aquilo que o outro é capaz de receber ou de aceitar.

 

Hoje, só me resta desejar que ele acorde um dia e deseje profundamente sair de baixo do divã, e que se permita arder, queimar e se desfazer para que possa renascer, renascer para uma vida sua, nova, da qual não faço mais parte. De minha parte, nunca consegui viver como besouro por mais de 48 horas. Sufocar-me comigo mesma não é uma idéia atraente pra mim (talvez pelo fato de nunca ter tido pendores narcisistas), nem mesmo nas minhas fases mais depressivas. Acho mesmo que prefiro me sufocar com os outros; é mais instigante. Nunca pendi a Byron; se é pra entrar no fundo do poço da minha existência, prefiro a companhia dos metafísicos. E um deles, um dos meus preferidos, o saudoso Murilo Mendes, escreveu um dia que “só não existe o que não pode ser imaginado”. Como tudo o que existe no mundo de mais magnífico foi, efetivamente imaginado – e imaginado por homens julgados “loucos e insanos”, diga-se de passagem – eu prefiro, então, imaginar, talvez insanamente, que sou fênix.

 

Sim, sou fênix! E todos nós podemos ser; temos o gérmen do mito nas nossas entranhas; temos essa força imensa, essa força de abraçar o mundo, essa força criadora, reparadora e restauradora. Mas pra acessá-la é preciso a coragem de expormo-nos à dor profunda, à combustão total. E esse, talvez, seja o mais doloroso e o mais importante passo.

publicado por blogdobesnos às 23:49

Pessoas fazem escolhas em suas vidas, é o que se diz, é o que se pensa. Nem sempre, contudo, há liberdade de opção para fazê-las. Na maioria das vezes o leque de possibilidades é bem pequeno, não raro mínimo; por outro lado, nem sempre tais opções são reconhecidas, seja por uma questão de cultura, pela educação recebida, pelo ambiente onde continuamente se construíram ao longo do tempo. A sensação de mal-estar e de incongruência mais faz aumentar as frustrações, os desenganos e as tristezas. Talvez por isso o destino seja um deus tão invocado, nas tragédias e nas alegrias.

 

Algo transcendente deve explicar, certamente, o fato de nossas necessidades, de nossos desejos não serem encaminhados, atendidos. O destino passa a ser, então, mais que uma entidade, para se tornar um oráculo, onde todos recorrem em busca da minoração de nossas frustrações. Muitos se enchem de ódios e de ressentimentos, de angústia e de inveja, enquanto outros são tão afortunados que parecem estar sempre felizes, como se flutuassem acima das tristezas e das tolices do dia-a-dia.

 

As primeiras são dignas de pena, de desprezo, pois são fracas, marionetes de um jogo onde as cartas já estão marcadas, inúteis estrangeiras de si mesmas. As segundas chegam, graças às suas certezas e acertos, muitas vezes casuais, à arrogância zombeteira, presunçosa. As injustiças e omissões do mundo se perfazem nas vidas dessas pústulas infames: das que passam como folhas ao vento pela vida, crendo cegamente no fato de que vêem a vida para sofrer, o que alimenta sua conformidade doentia e daquelas que a desfrutam como nababos, como primas abençoadas que, estando a se fartar de um banquete cujo prato principal é o consumo, a jactância e a ostentação de seus bens materiais demonstram mais nada importar.

 

Nenhuma dessas figuras consegue ser solidária, porque lhes falta o desinteresse ao fazer algo que poderia efetivamente beneficiar terceiros. As primeiras, corroídas pelas próprias idiossincrasias, não conseguem estender nada de bom grado aos outros, pois insistem que, se o fizerem, estarão se autoprivando de seus alfinetes. Sustentam que já tiveram tanto negado que devem aferrar-se ao que tem como se fossem mastro e flâmula. Àquelas segundas, acode o desinteresse, mesclado à insegurança primordial de que não possam mais gastar tanto para sustentar sua auto-imagem e seus delírios de consumo.

 

Efetivamente se com terceiros colaboram, é porque buscam gratificações, seja o reconhecimento de seus pares, seja o acesso a mídia ou ainda ao receio que tem de terem arranhados seus esforços tão surpreendentes para (de)mostrarem publicamente o que entendam que lhes seja vantajoso, seja do ponto de vista social ou meramente econômico. Ao agirem assim, ambas entram em um mundo de trocas de valores mercantis, nada mais do que isso, embora busquem dar a tais transações ares simbólicos de mediação com um mundo ético e humanitário.

Estou aqui para denunciá-las, com todas as suas canalhices cometidas diuturnamente. Mais: vim para limitá-las. Eu sou o Espelho.

 

Vagueio assim pelos monturos deixados pelos homens e mulheres vãos em seus caminhos, pois deles nada mais se vê do que tristes lembranças. São deles que provêm as energias que iluminam as próprias leviandades, os próprios egoísmos. Tenho, assim, vontade de recolhê-los, não apenas aos dejetos e lixos, mas a eles mesmos, seus produtores, amontoados bizarros que pesteiam a terra com seus incômodos, com suas idiossincrasias e suas leviandades.

 

 Por vezes me detenho sob alguma paliçada, observando as casas, as habitações onde se desenvolvem os dramas, às pequenas misérias alentadas pelos desejos, pela ambição, e de onde esteja posso aspirar a sombra oculta que contamina as almas de quem talvez possa ter uma vida mais prestimosa. Nada adianta, contudo, que volta a roda da arrogância a sorver, de uma só vez, promessas, sonhos, animações, e tudo se torna como uma mescla colorida de frustrações que se elevam como cumulus nimbus. Simplesmente a tanto que já vi, nada mais me espanta, me entristece, me comove, me deixa mais ou me deixa menos. 

 

Apenas o amor me consola; não me alvoroçam mais as mesquinharias do dia a dia, nem as surpresas que os homens e mulheres causam a si mesmos e aos outros; nada mais me toca, me comove, a não ser a inocência das crianças, o desconsolo dos idosos e o reconhecimento da loucura. No mais, estou infenso a qualquer boa-intenção que se esboroa como um castelo de cartas, como um pedaço de gelo posto a queimar no calor. Meus atavismos acabaram porque não há porque mantê-los junto a mim. Almas, almas, almas apenas cruzam meus caminhos, como cursores sem rumo, como trens sem frenagens, como albatrozes planando. Não mais me comovem os desusos, os rumores, as eternas reclamações, nem sequer as ilusórias pontuações com as quais os homens e as mulheres buscam alcançar o paraíso. Tolos, inúteis apelos daqueles, mas bem mais irreconhecíveis em suas preces que, por não serem preces, são apelações mentirosas de corações que se calaram ante as conveniências. 

 

Talvez somente por aqui eu possa revitalizar as minhas visões, que transcendem de muito os dogmas dos homens e das mulheres que se crêem muitas vezes imortais por seus desejos e por suas miserabilidades revitalizadas através de desejos nos quais a carne, a voragem, o gozo e a vulnerabilidade são por demais avultadas. Talvez somente por aqui eu possa enfim descrever pequenas histórias, já para mim de todas conhecidas, de tão reveladas que não mais as suporto ter unicamente para que eu as desfrute, bagaços de fruta, caroços que tenho de expulsar de minha mente, de meu corpo, para que não exploda de uma vez por todas, e aqui, e agora, rogo, peço para que alguém comigo compartilhe, de todas apenas algumas experiências, parcas recordações de um repertório que vem me sufocando, que bem me atordoa desde que passei a ter das mesmas o conhecimento, e, mais uma vez aqui imploro, de todo humilde que busques uma cadeira, um sofá, um esconso qualquer, mesmo ou preferivelmente uma sombra solene de árvore frondoso, para que te possa dizer o que de muito eu já sei, desde que há muito me tornei o que sou, mensageiro, hipótese não concretizada. Eu sou o Espelho.

publicado por blogdobesnos às 00:31

J. saiu de casa com uma neblina forte atrapalhando tudo e com um frio que começava na pele, passava pelos ossos e terminava na alma.  O Sol era apenas uma presença tenue naquela manhã de geada, na qual pequenos cristais se acumulavam nas folhas das árvores e tingiam de cristais gelados a paisagem, tornando o clima ainda mais úmido. 

 

“Se o Sol estava assim, imagine a nossa mãe Terra, coadjuvante do grande astro…”, pensou J. Coadjuvante como ele próprio se sentia agora, enfrentando a geada como enfrentava, muitas vezes, a si mesmo e suas limitações. Vinha pensando nisso quando chegou, finalmente, ao poço. O mecanismo também estava congelando.  Jogou o balde e começou a movimentar a roldana, logo que ouviu o ruído da água. Pele muito clara, logo suas mãos e seu rosto rapidamente ficaram róseos, para progredir para um vermelho estranho, típico. Os olhos azuis cerravam enquanto as mãos buscavam o balde; seus pensamentos vagavam, erravam entre suas memórias e seu presente porque o futuro não lhe parecia nada mais que uma sequencia rotineira e um pouco sem sentido.

 

Uma vaca mugiu no pasto, logo adiante. J. estava tão conformado com sua vida que nada enxergava à frente. Finalmente o balde chegara às suas mãos. Apanhou-o, transferiu a água do balde para a tina que havia traazido e voltou-se para retornar à casa. Alguns metros depois, escutou os ruídos vindos do poço. De dentro dele.  O frio fez com que ainda se espantasse mais. Não conseguia, ali, reconhecer vozes humanas, menos ainda algum som de animal, daqueles que possuía em sua granja: patos, bois, cavalo, galinhas… Absolutamente nada se assemelhava àquele timbre rascado, incrivelmente agudo e dorido. Levou as mãos ao ouvido, enquanto, com cautela, apanhou uma enxada. Reclinou-se sobre o poço, e teve dificuldade de observar algo. Ali, no fundo, pensou ter percebido uma sombra. De repente o som aumentou muito de intensidade, e ele recuou.

 

A enxada caiu de suas mãos e sentiu o sangue escorrer de seus ouvidos. Era ensurdecedor e terrivelmente agudo. Olhou para o poço, mais sentiu do que viu algo saindo de lá. Algo assustador que ele não conseguiu definir, pois o desmaio o apanhou e o fez descansar.

 

Pela tarde, J. não regressou à casa, nem pela manhã e tarde seguintes. Clara, sua mulher, então avisou a delegacia local, que saiu a procurá-lo. J. foi localizado quinze quilometros ao sul da granja: vagava como se o tempo tivesse congelado; errava como se nada de diferente tivesse ocorrido. Para a polícia e a pequena comunidade rural, o breve desaparecimento foi motivo para conversas, fofocas e diz-que-diz-ques. Surpresos também ficaram os policiais quando sua esposa o recebeu como se tal sumiço fosse uma rotina; ela recebeu J. bastante tranquila, entrou na casa, ofereceu café aos policiais que terminaram por não aceitar, tinham de retornar à delegacia, uma reunião com o delegado os esperava. Mas eles estranharam muito tal recepção.

 

No dia anterior, Clara havia ligado bastante preocupada, quase histérica no telefone: gritara inclusive, exigindo providências urgentes. Agora, recebera J. como se tal desaparecimento fosse normal. Os dois policiais, ao retornarem, comentaram o fato. Era como, de algum modo, ela soubesse que nada de maior teria acontecido com o marido.  A impressão era a de que ela recebera notícias que informavam que  J.  não corria riscos maiores, mas não as havia repassado à polícia. De comum acordo, os policiais decidiram que, de quando em quando, retornariam à granja, para verificar como estavam as coisas.

 

O sargento Eduardo Pinto verificou seu relógio: quatro e meia da tarde; acelerou o veículo, para não chegarem atrasados na delegacia. Mais alguns minutos e a reunião iniciaria.

 

Com o decorrer do tempo, a comunidade achou outros assuntos para falar, embora, realmente, não houvesse grandes opções de assuntos pessoais para escarafunchar, para aumentar o entretenimento: afinal, todos sabiam que o barbeiro tinha uma amante e que sua mulher fazia de tudo para evitar qualquer atitude, que o governo do Estado construiria uma estrada (a promessa tinha já cinco anos) para escoar a produção rural, no mais eram os ataques de epilepsia de Eleumara, a qualquer tempo, a morte ainda não explicada de Rafael Borges, alfaiate casado com Laurinda Estrela, enfim. por aí íam os assuntos do dia-a-dia do povo, afora as questões economicas como os valores das safras, e, sem dúvida alguma, as eleições próximas, onde haveria uma previsível vitória da direita, porque, como se sabe, os petistas são todos uns vermelhos comunistas canalhas inconfiáveis e por aí vai.

 

De tal maneira assim, que o breve desaparecimento de J. não rendia muito como assunto, tendo, portanto, sido paulatinamente relegado ao esquecimento, embora todos reconhecessem que ele havia ficado com uma sequela importante: não conseguia mais escutar no ouvido esquerdo, apenas no direito. Os exames médicos confirmaram: ele havia ficado surdo daquele ouvido, mas não se lembrava de como aquilo tinha ocorrido, o que intrigou bastante o único oftalmologista que havia, num raio de quarenta quilômetros da granja.

 

Também, sempre que perguntavam a J. o que havia acontecido, porque ele havia sumido e o que afinal houve com seu ouvido, mesmo os amigos mais chegados – não eram muito – recebiam a mesma resposta: a única coisa que J. se lembrava era de que acordara de manhãzinha bem cedo para fazer seu café. Daí para frente, uma lacuna enorme; sequer se lembrava do motivo pelo qual perambulara, até se afastar quinze quilômetros da casa e ser “achado pela polícia”. Um branco total, e daí não evoluía sua fala, menos ainda sua memória.

 

A única pessoa que sabia o que havia realmente ocorrido era Clara, que entendia perfeitamente porque J. havia tido sequelas após ouvir o que ouviu. Casar e morar ali tinha sido um risco calculado, que ela não revelaria nunca. Mesmo ela, porém, tinha dúvidas: ele teria, afinal, visto algo, mesmo que de relance? De qualquer modo, ela não poderia, simplesmente, fechar, lacrar o poço. Afinal era ali o seu abrigo predileto quando ficava junto aos seus, com os dentes aguçados e ouvidos extremamente sensíveis à caça enquanto J. como bom e arrependido cristão, dormia o sono dos justos.

publicado por blogdobesnos às 00:28

Já disse todas as mentiras que pude criar, e elas sempre me deram a agradável sensação de conveniência. Depois, com o tempo, minhas vítimas preferenciais passaram francamente a duvidar do que eu prestimosamente inventava, de início sutilmente até o ponto em que me chamavam de falso, de não-confiável. Isso, longe de mexer com a minha auto-estima, acabou por liberar-me para o mundo da irresponsabilidade discursiva. Como um vampiro, passei a alimentar-me de novos crédulos, reiniciando o processo. Tudo isso me foi densamente útil ao longo da minha vida, em especial quando urdi e assassinei Juan Peres Almado. Detalhista, praticamente nada deixei de provas, a quando a Delegacia de Homicídios (DH) de Viña del Mar começou a caçar o matador do jovem e promissor mestre universitário, novamente o senso de escapismo me salvou.

 

Em uma noite particularmente quente, entrei em um bar, mais um pub, para ser exato, e comecei a beber. Quando o álcool atingiu o limiar a partir do qual poderia me comprometer seriamente, apanhei meu automóvel e acelerei até a DH, tendo o cuidado de travar bruscamente em frente a delegacia, de modo a que os presentes escutassem que os pneus travavam violentamente sob o asfalto, com o som característico de uma brecada. Entrei no prédio e anunciei que era o responsável pelo assassinato, tendo o cuidado – como é boa a prática apurada de falsear a verdade! - de plantar, em meu depoimento algumas sutis incongruências. Fui preso na hora.

 

No dia seguinte meu nome explodiu no noticiário local e, em minutos, no nacional: o assassino havia confessado o crime! Carlito de Los Santos, arquiteto de renome, quarenta e oito anos, ou seja, eu, havia procurado a DH local para confessar o assassinato de Juan Peres Almado, por motivos torpes – ciúmes homossexuais – e com o uso de crueldade – a vítima tinha sido torturada, antes da execução – o que, convenhamos, venderia um bom número de edições. Evidentemente a imprensa queria entrevistar o assassino e também, mais óbvio ainda que eu cobrei pelo incomodo, sendo o dinheiro depositado em minha conta corrente, além dos dez por cento reservados ao advogado, que, por seu turno, conseguiu algumas reportagens adicionais, que igualmente foram capitalizadas.

 

O caso, sem dúvida, era palpitante e tinha todos os ingredientes para virar o assunto do dia, do mes, dos meses que se seguiram. Após a DH, a televisão e as rádios ouvirem todos os possíveis envolvidos, quatro meses após eu fui liberado, porque as investigações esbarravam em suas incongruências. Eu deixei então de ser o suspeito número um. Solto, passei a argumentar no sentido da minha inocência, manipulando a situação e induzindo a opinião pública a entender que eu tinha sofrido uma injustiça; que na verdade a minha confissão advinha de questões psicológicas não resolvidas, conforme tratamento que havia começado, de modo conveniente, um ano antes do meu pequeno pecado homicida.

 

De bom profissional, passei a ser considerado pela midia como um excelente arquiteto. Nada que a midia não promova, desde que entendamos que devemos agir de modo inteligente de modo a ressaltarmos nossas virtudes de modo sutil, enganoso, como eu era expert em fazer. A imagem de contumaz mentiroso foi devidamente apagada graças a atuação midiática. Meu escritório de arquitetura teve um considerável acréscimo de contratos a aumentou sua produção em quase sessenta por cento e, embora tivesse que contratar terceiros, aumentando os custos de produção, as margens de lucro eram cada vez maiores. Quatro anos após o assassinato inaugurei duas filiais: uma em Buenos Aires e outra em São Paulo.

 

Há, contudo, um delegado em Viña del Mar que insiste em buscar provas da minha culpa. Para ele sou um psicótico, um frio assassino que deveria nunca ter saído da prisão, que deveria estar encarcerado, preso. Tolices de policial inconformado com a própria mediocridade, envolto em suas rotinas burocráticas. Enquanto eu circulo, midiático e com sucesso, ele enfrenta seu dia-a-dia de modo deprimente. Contudo, eu sei que mais cedo ou mais tarde ele tentará me enfrentar, com suas provas já esquálidas, seus escritos e conclusões, seus estudos de direito penal e seus amiguinhos da polícia. Talvez, nesse dia, eu tenha de retomar as artes da dissimulação e me obrigue novamente a manipular e minar totalmente a sua credibilidade, até que o perigo passe definitivamente.

 

Mas você não acredita nisso, não é?

 

publicado por blogdobesnos às 00:27

Naquela noite, P. sonhou que tinha o poder de ver o que de microscópico havia (células, mitocondrias, bacilos, ácaros, pólen, fímbrias, pedaços minúsculos de carne, de unhas, de pelos, fibras nervosas, texturas, gotas de chuva, insetos diminutos, até enlouquecer).  Na noite seguinte, sonhou que tinha o poder de ver o que de macroscópico havia (eu, você, os navios, tudo o que vemos normalmente, de tal modo condensados e expostos tão rapidamente quanto o nosso subconsciente pode detectar, pedaços de tudo e de todos, até enlouquecer).


Na terceira noite, sonhou que tinha o poder de ver o cosmos, por inteiro (luas, sóis, buracos negros, estrelas, meteoritos, meteoros, via láctea, andromeda, velocidade da luz, partículas rastreadoras, limites do imponderável, até enlouquecer). Na quarta noite, P.  sonhou que tinha o poder de visitar os mares, os oceanos, os lagos (fossa das Marianas, oceano ártico, oceano índico, oceano atlântico, oceano pacífico, mar de bósforo, mar das antilhas, e todos os seus habitantes e todos os seus habitats, peixes, mamíferos, estrelas do mar, sargaços, até enlouquecer). Na quinta noite, P. sonhou que tinha o poder de conhecer da natureza tudo o que existia (árvores, matas, florestas, desertos, animais de todos os tipos e tamanhos, roedores, muitos roedores, pacas e leões, antílopes e girafas, lobos e dromedários, até enlouquecer) .

 

Na sexta noite, P. sonhou que tinha o poder de ver e entender tudo o que de sutil e mecânico houvesse (cilindros, cones, projeções, máquinários, indústrias, chips, computadores, novelos de lã, batatinhas, teclados, música de câmera, digitais, aparelhos de som, montadoras de automóveis, laser, portas, pequenas e grandes passagens, eletrodos, até enlouquecer). Finalmente, na sétima noite, P. sonhou que era Deus (onipotencia, criação, signo religioso, crença, fé). Na oitava noite ele morreu, para ressucitar no sonho seguinte, quando todos passaram a dizer que ele era, efetivamente, Deus (abluções, banhos crismais, confissões, igrejas, padres, vaticano, convenções, dogmas, rituais a seguir, obrigações, vida metódica, previsível, tristeza do corpo, rigidez da mente).


A partir da décima noite, P. nunca mais sonhou.

publicado por blogdobesnos às 00:26

A velha senhora buscou, no seus guardados, as fotos dos seus netos. Achou-as, cuidadosa que era, e as deixou sob  a mesa do comedor, dirigindo-se à cozinha, onde – apeteceu-lhe! começou a preparar um chá com bolinhos. “Nada melhor do que um chá, em uma tarde chuvosa como hoje”, considerou. Enquanto as nuvens de chuva – “cumulus nimbus”, diria nossa querida vozinha - escureciam a cidade, o Borracha preparava-se para invadir a casa da velha. Tinha verificado sua rotina: ela não poderia nem conseguiria opor resistência, o corpo e a idade não lhe permitiriam, além do que ela era aposentada e morava sozinha. Os filhos só a viam de meses em meses. “Perfeito, hoje vou fazer a festa”, pensou. Agora mesmo sabia que ela estava provavelmente fazendo algum chá com bolinho, coisa de velha. Sorriu e apertou com força o pé-de-cabra e verificou se a faca continuava consigo. Tudo bem. Borracha, quase sem qualquer cuidados – até para não levantar suspeitas – aproximou-se debaixo da chuva, que já se transformara em tempestade. “Vou fazer uma limpa, só dinheiro e jóias”, susurrou, antegozando o momento que se aproximava…

 

Logo que a velha senhora começou a desfrutar o gosto do chá e dos seus maravilhosos bolinhos – não havia quem não invejasse seus dotes culinários – percebeu claramente o barulho da porta dos fundos sendo forçada. “Ladrão”, teve a cerrteza imediata. O que aconteceria a seguir? Sentiu que alguém entrara na casa. A sensação de desamparo ocorreu-lhe, mas, sabia, tinha de lutar contra a mesma. O telefone mais próximo se encontrava na sala, e era tão antigo quanto a casa. Recriminou-se por não ter comprado um celular, ou um telefone sem fio, o que seria suficiente para si mesma, pois raramente saía. Novo  movimento. A visão periférica da velha senhora acusou: o desconhecido havia, efetivamente, entrado na cozinha.

 

O tempo, a chuva, a escuridão, a própria casa, tudo congelou, tudo ficou momentaneamente suspenso, como se o próprio ar, de repente, ficasse sólido.

 

Borracha ficou tão espantado quanto estático. Do meio do cenário, da xícara de chá, das bolachinhas, dos bolinhos, da velha mão enrugada da sua pretensa vítima brotou uma pistola Taurus PT 59 S calibre 38. Borracha surpreso, parado. O alvo perfeito. Quatro disparos foram feitos. O primeiro atingiu-o no ombro esquerdo, o segundo na articulação do joelho direito, o terceiro  no estomago. Ele se curvou, mas não viu mais nada. O quarto tiro o atingiu no lobo temporal, mas sequer foi registrado. Ele já havia mergulhado para a escuridão.

 

 

 

Dez minutos após ter terminado o chá, a velha senhora dirigiu-se à janela, onde ficou olhando a chuva amainar. Somente após fumar seu cigarro habitual, dirigiu-se lentamente para o telefone da sala. O corpo ainda vertia sangue. “Os peritos vão ter trabalho”, pensou, resignada.

publicado por blogdobesnos às 00:24

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