SIAMO TUTTI FENICE
Um textinho meu, depois de uma noite kafkaniana! Beijos a todos. Ana
Siamo tutti Fenice
Ana Boff de Godoy
Sempre fui fascinada pelo mito de Fênix. Esse mito (que sempre se teve por grego, mas que hoje se atribui originariamente aos egípcios) fala de uma ave de fogo, do tamanho de uma águia e com uma força enorme, capaz de carregar até mesmo um elefante. Mas não é sua força o que mais costuma impressionar e sim o fato de ela, ao morrer, entrar em um processo de auto-combustão e, depois, simplesmente ressurgir das próprias cinzas. Alguns autores gregos diziam que isso ocorria em intervalos exatos de 500 anos; outros, que cada ciclo de vida da Fênix durava exatamente 97.200 anos. Eu prefiro acreditar que o ciclo de vida dela era variável e que ela se auto-consumia quando estava de saco cheio de viver aquela mesma vidinha.
Assim como sol se levanta a cada manhã e “morre”, metaforicamente consumindo-se em si mesmo a cada fim de tarde, essa ave, ao reerguer-se de suas cinzas, levava à Cidade do Sol, e mais especificamente ao altar do Deus Sol (Hélios), os restos de sua ave progenitora, ou seja, sua mãe (ela mesma). Alguns autores dizem que era do seu pai (ele mesmo). Uma ave ou un uccello, mãe ou pai, ela mesmo ou ele mesmo… pra mim não importa o sexo do mito, importa o valor que ele me ensina e me incita.
Talvez pela minha própria natureza eclética, sempre tive a sorte de conviver com gente das mais variadas classes, cores, credos, gêneros e tudo mais que se possa imaginar. Transito sem problemas entre acadêmicos, catedráticos e professores mortais; entre médicos, psicólogos, freudianos, transpessoais, alopatas, homeopatas e sociopatas; entre veganos e carnívoros; entre mães, pais e filhos; entre católicos, espíritas, agnósticos, budistas e judeus; entre teatrólogos, astrólogos, historiadores, matemáticos, estancieiros, policiais, tradutores, músicos e poetas; entre gente que nunca soube o valor das coisas que tem e entre aqueles que agradecem à vida pelo simples ato de respirar; entre gente grilo muito alternativa, gente tradicional e gente muito tradicional que se acha alternativa… não daria para contabilizar todo tipo de pessoas que conheço e que respeito e admiro apesar de nem sempre (ou quase nunca) desejar me parecer com elas.
A questão é que, apesar de tão diversas, todas essas pessoas têm alguma coisa em comum. Assim como todas têm um coração, duas pernas, dois braços, um tronco, um cérebro, um par de olhos, enfim, coisas que as definem como tão semelhantes mas ao mesmo tempo e paradoxalmente tão diferentes, essas pessoas têm em si, todas, uma fênix. Todas carregam o gene da imortalidade e da capacidade de se autodestruir e também de se auto construir e se auto reconstruir. Todas, sem exceção. Mas claro que de maneiras, ciclos e intensidades completamente diferentes.
Estou numa fase dessas, ainda em combustão, ainda me desfazendo aos pedaços, ainda virando cinza. Sim, dá um certo desespero, mas como já passei por esse processo algumas vezes, a consciência de que logo virá o renascimento me dá um certo conforto. O que não me livra, de todo, da angústia… Até porque, até então, me desfazia e refazia de um aspecto de cada vez, de um “golpe” de cada vez. Dessa vez, provavelmente pra testar minha força e minha capacidade, o desmoronamento veio por completo, atingindo todas, ou quase todas, as áreas da minha vida. Refazer o corpo, a mente, as emoções, as relações, as amizades, a saúde financeira, a família e a carreira não é, definitivamente, tarefa fácil. E sim, tenho medo de não conseguir e de jogar a toalha. Mas como, agora, outras vidas dependem da minha e não quero partir sem a certeza de ter feito o melhor possível, permito que a vida continue me incitando e me impulsionando a seguir em frente, mesmo que esse seguir em frente seja ele também incerto e não sabido, assustador e carregado de possíveis expectativas frustradas.
Gosto muito de uma frase do Camus que diz assim: “No meio do inverno, descobri finalmente que existe em mim um invencível verão.” Isso me faz pensar que, se sempre fosse verão, nós sequer poderíamos perceber e valorizar esse verão. Ou seja, se tudo é relativo (Einstein) e se tudo é ilusão (Buddha), se não houvesse o inverno, não haveria também o verão (Sócrates). As coisas não são o que são, são aquilo que são postas em relação num determinado momento e num determinado espaço, e mesmo assim, para cada um, de cada ponto de vista, elas se apresentam como diferentes. Não é à toa que a tragédia de uns equivale à glória de outros…
Semana passada fui convidada a dar uma palestra sobre a Metamorfose do Kafka para um grupo de 60 adolescentes de uma escola particular. Eu não sabia muito bem que abordagem fazer, já que só tinha dado aulas de literatura na faculdade de letras, pra um público completamente diferente. Decidi, então, me deixar levar pelo que o momento me propiciasse, e foi uma verdadeira delícia. A maioria dos alunos sequer tinha conseguido chegar à metade do livro, não estava entendendo nada e diziam sentir-se oprimidos, repugnados pela leitura. Resolvi, então, ir contando a história, e ir parando aos poucos pra uma reflexão, não crítica-literária, mas filosófica – e filosófica não no sentido formal, mas prático. Vivi, naquelas duas horas de palestras, um verdadeiro momento de orgasmo intelectual com aqueles adolescentes. Vi naqueles olhinhos inquietos a curiosidade, a perplexidade e a dúvida, as molas da própria existência, latejando e vibrando numa sintonia rara e, ainda que tensa, pelo conteúdo, serena, pela descoberta. E descobri, no meu próprio discurso, uma leitura nova, não só do livro, mas da minha própria vida. Revivi o tempo em que, como aquelas crianças, li Kafka pela primeira vez e me senti confusa: primeiramente consternada com o personagem; depois revoltada pela aceitação dele mesmo para com a sua condição; depois, ainda, comovida e assustada por perceber que a aceitação de uma condição que é a antítese daquela que desejamos, é, muita vezes, o destino de muitos de nós e, pior do que isso, que todos nós, inúmeras vezes, acatamos e aceitamos essa condição porque ela nos parece a única forma possível num determinado momento… e às vezes é mesmo.
E isso não é fatalismo, é a própria condição humana, é o próprio cerne da idéia existencialista em que “só somos enquanto somos”, ou seja, em que eu só efetivamente existo enquanto produzo: relações, idéias, trabalho, dinheiro… Quando páro de produzir, já não sou. Quando páro de desempenhar alguma papel, já deixo de ser. Mas deixo de ser o quê? Para os essencialistas, continuo sendo, porque minha essência não esvaece, mas sou numa esfera que não serve à minha existência, então, eu diria que não é nada muito útil, ao menos nessa vida, nesse planeta!
Estamos, afinal, encapsulados num corpo físico, dependemos dele e das coisas concretas para sobreviver. Claro que só isso também não garante nossa existência. E acho que é essa nossa grande dificuldade: lidar com duas esferas de existência numa única vida. Se fôssemos só energia, seria mais fácil. Se fôssemos robôs, mais fácil ainda. Mas somos muito complexos, talvez muito mais do que gostaríamos. E não somos tão influentes sobre nós mesmos quanto gostaríamos que fôssemos. Talvez os iluminados consigam não se deixar entristecer ou se desesperar por sentimentos que sequer sabemos de onde vêm. Eu não. Por mais forte que me reconheça, por mais que pense racionalmente nas possibilidades infinitas de transformar dor em alegria, tem vezes que quero mesmo é me encarapuçar num grosso e impenetrável casco de besouro ou barata e esgotar meus últimos suspiros inerte, debaixo de um divã, como fez Gregor Samsa, protagonista desse conto de Kafka. Essa noite mesmo me senti assim, queria desaparecer embaixo do divã e não mais ter que me dar ao trabalho de, sobre ele, tentar entender a minha nada mole existência. Temos todos o direito de nos sentirmos assim. Mas isso não resolve nosso dilema existencial.
Esse dilema se trava não só nessa dicotomia entre essência (ou alma, ou espírito, ou energia ou o nome que se queira dar) e existência (ou relação entre coisas e seres qualquer coisa que o valha); ele se trava também no embate entre os diferentes papéis que desempenhamos e, mais do que isso, na relação entre esses papéis (nossos personagens) e nossa própria autoria. Um dos meus autores preferidos, Pirandello, ele também existencialista, mas de um existencialismo metafísico, quase mágico, descreve com maestria essa relação numa peça teatral chamada Sei personaggi in cerca d’autore (Seis personagens à procura de um autor). O título já diz tudo. Somos pais, filhos, amantes, provedores, profissionais, estudantes, amigos…somos tantos personagens, nos dividimos em tantos papéis durante o dia, durante a vida, que às vezes (ou quase sempre) perdemos a noção de quem, afinal, somos nós, quem, afinal, é o autor desses papéis, da nossa própria vida, de nós mesmos. Alguns dirão que é Deus. Como acredito que todos somos deuses e que, por isso, a responsabilidade sobre nossa existência é nossa própria, não consigo confiar a algo externo o que vejo, nitidamente, estar em mim. Claro que o externo me afeta, porque atinge meu interior. Claro que não posso controlar tudo, que não tenho ingerência sobre tudo, nem sobre todos meus sentimentos, como já me referi. Mas sou, afinal, a autora de mim mesma. Porque só cabe a mim resistir ou lutar, ignorar ou entender, aceitar ou mudar, ou tentar achar um meio-termo entre tudo isso. Ninguém vai fazer isso por mim. Às vezes não é hora de agir, de escolher. Às vezes precisamos só respirar, só sentir a vida e o entorno, para tentar entender e, aí sim, fazer as escolhas e partir para a ação.
Isso o personagem de Kafka não conseguiu fazer. Quando parou de desempenhar seu papel por um instante, não encontrou seu autor e se deixou sufocar pela angústia da falta. Falta de opção, de amor, de coragem, de vontade… falta dele mesmo, de uma autoria firme que escrevesse um roteiro minimamente decente para sua vida. E sucumbiu ao peso dessa angústia. Muitos sucumbem. Fênix, não; não assim.
Mesmo que as escolhas me pareçam quase impossíveis agora, mesmo que o momento esteja tão intrincado, tão emaranhado que não saiba nem por onde começar a puxar o fio, mesmo que meu coração esteja tão dilacerado a ponto de eu desejar arrancá-lo para não ter que ouvi-lo gritar, mesmo que as perspectivas não pareçam boas, uma escolha se me impõe: quero ser Gregor Samsa ou Fênix? Quero me sufocar em mim mesma e cessar minha dor, ou quero fazer arder profundamente o que ainda resta em mim e renascer com um novo rumo, com um novo sopro?
Acho que, pela nossa própria condição, às vezes optamos por sermos besouros, e isso determina nosso ser naquele momento. Outras vezes, essa escolha se repete compulsoriamente e vamos nos fixando nessa forma de ser, até que acabamos por isolar, com nossa carapaça impenetrável, as relações e os sentimentos. E vamos ficando sós, e cada vez mais sós, não vemos mais as possibilidades, e definhamos. É muito triste observar alguém que amamos, ou que amamos um dia, transformar-se em besouro. É desesperador perceber-se impotente frente a um besouro. Meu marido (agora legalmente ex) decidiu embesourar-se. Lutei durante anos contra essa sua decisão. Tentei desesperadamente nutri-lo de vida, mas isso é impossível. Não somos responsáveis pelas escolhas alheias; por mais que tenhamos vontade e empenho, só conseguimos dar aquilo que o outro é capaz de receber ou de aceitar.
Hoje, só me resta desejar que ele acorde um dia e deseje profundamente sair de baixo do divã, e que se permita arder, queimar e se desfazer para que possa renascer, renascer para uma vida sua, nova, da qual não faço mais parte. De minha parte, nunca consegui viver como besouro por mais de 48 horas. Sufocar-me comigo mesma não é uma idéia atraente pra mim (talvez pelo fato de nunca ter tido pendores narcisistas), nem mesmo nas minhas fases mais depressivas. Acho mesmo que prefiro me sufocar com os outros; é mais instigante. Nunca pendi a Byron; se é pra entrar no fundo do poço da minha existência, prefiro a companhia dos metafísicos. E um deles, um dos meus preferidos, o saudoso Murilo Mendes, escreveu um dia que “só não existe o que não pode ser imaginado”. Como tudo o que existe no mundo de mais magnífico foi, efetivamente imaginado – e imaginado por homens julgados “loucos e insanos”, diga-se de passagem – eu prefiro, então, imaginar, talvez insanamente, que sou fênix.
Sim, sou fênix! E todos nós podemos ser; temos o gérmen do mito nas nossas entranhas; temos essa força imensa, essa força de abraçar o mundo, essa força criadora, reparadora e restauradora. Mas pra acessá-la é preciso a coragem de expormo-nos à dor profunda, à combustão total. E esse, talvez, seja o mais doloroso e o mais importante passo.