Homens naufragam todos os dias. Não sei como não são reconhecidos: assemelham-se a esconsos, a tábuas jogadas pelas marés de um lado para outro. Para mim são absolutamente visíveis os seus naufrágios. Ficarão por lá, se debatendo, até o momento em que desaparecerão entre as esquinas, os desvãos, as marquises, os viadutos. Simplesmente sumirão. Em três noites das semanas de inverno eu e Eduardo apanhamos a van da Secretaria de Direitos Humanos e saímos pela cidade procurando nossos náufragos.
Muitos se recusam a sair de onde estão, mesmo que mergulhados na mais completa solidão e sentindo o frio enregelar-lhe os ossos. Pensamos, conversamos sobre a natureza humana; procuramos explicações, alternativas, mas isso nem sempre nos alivia o fardo. Há outros, porém, que estão às voltas com tamanho desespero, com tão grande solidão que basta verem os faróis da van que já nos abana, em completa passividade. Então os recolhemos, os levamos para uma noite mais quente, para um prato de sopa, um pedaço de pão, um pouco de proximidade, ainda que fugidia, com uma casa, com um lar.
Esses são os mais fáceis de conduzirmos, pois eles querem, desejam por abrigar-se. Não poucas vezes, de si mesmos, até que a luz do sol e os vícios incontáveis os levem de volta para a rua. Não conseguem ficar muito tempo no abrigo, simplesmente são homens-mola: necessitam estar em trânsito, resgatar passos já perdidos, já esmaecidos.
Semana passada procuramos o Alemão; seus amigos de bar e de infortúnios disseram que o Alemão havia sumido da cidade, tinha voltado para São Leopoldo. “Como?” foi o que perguntamos. “Pessoas da família dela: vieram para cá, procuraram, procuraram e o encontraram. Disseram que o filho queria vê-lo, ele se foi.”, a informação foi esta. Que Alemão tinha um filho de doze anos, que era insuportável ao garoto não ver o pai, passar ainda mais tempo imaginando onde o pai estaria, qual seria seu destino.
A dor foi tanta que os parentes mais próximos decidiram procurar o indigente. Localizaram e o levaram. As notícias que recebíamos eram assim: marcadas pela transitoriedade, sem fontes seguras, um pouco além do boato. De qualquer modo, ficamos felizes. Tomara desse tudo certo e que o Alemão pudesse, enfim, reencontrar-se.
O inverno continuava fustigando a todos nós, e havia uma chuva fina, insistente, mas, por alguns intantes, nos sentíamos aquecidos. Eduardo acendeu um cigarro, e, de repente, estávamos em paz.