Escritos para você

02
Abr 12

Homens naufragam todos os dias. Não sei como não são reconhecidos: assemelham-se a esconsos, a tábuas jogadas pelas marés de um lado para outro. Para mim são absolutamente visíveis os seus naufrágios. Ficarão por lá, se debatendo, até o momento em que desaparecerão entre as esquinas, os desvãos, as marquises, os viadutos. Simplesmente sumirão. Em três noites das semanas de inverno eu e Eduardo apanhamos a van da Secretaria de Direitos Humanos e saímos pela cidade procurando nossos náufragos.

 

Muitos se recusam a sair de onde estão, mesmo que mergulhados na mais completa solidão e sentindo o frio enregelar-lhe os ossos. Pensamos, conversamos sobre a natureza humana; procuramos explicações, alternativas, mas isso nem sempre nos alivia o fardo. Há outros, porém, que estão às voltas com tamanho desespero, com tão grande solidão que basta verem os faróis da van que já nos abana, em completa passividade. Então os recolhemos, os levamos para uma noite mais quente, para um prato de sopa, um pedaço de pão, um pouco de proximidade, ainda que fugidia, com uma casa, com um lar.

 

Esses são os mais fáceis de conduzirmos, pois eles querem, desejam por abrigar-se. Não poucas vezes, de si mesmos, até que a luz do sol e os vícios incontáveis os levem de volta para a rua. Não conseguem ficar muito tempo no abrigo, simplesmente são homens-mola: necessitam estar em trânsito, resgatar passos já perdidos, já esmaecidos.

 

Semana passada procuramos o Alemão; seus amigos de bar e de infortúnios disseram que o Alemão havia sumido da cidade, tinha voltado para São Leopoldo. “Como?” foi o que perguntamos. “Pessoas da família dela: vieram para cá, procuraram, procuraram e o encontraram. Disseram que o filho queria vê-lo, ele se foi.”, a informação foi esta. Que Alemão tinha um filho de doze anos, que era insuportável ao garoto não ver o pai, passar ainda mais tempo imaginando onde o pai estaria, qual seria seu destino.

 

A dor foi tanta que os parentes mais próximos decidiram procurar o indigente. Localizaram e o levaram. As notícias que recebíamos eram assim: marcadas pela transitoriedade, sem fontes seguras, um pouco além do boato. De qualquer modo, ficamos felizes. Tomara desse tudo certo e que o Alemão pudesse, enfim, reencontrar-se.

 

O inverno continuava fustigando a todos nós, e havia uma chuva fina, insistente, mas, por alguns intantes, nos sentíamos aquecidos. Eduardo acendeu um cigarro, e, de repente, estávamos em paz.

publicado por blogdobesnos às 23:44

Pneumotórax


Manuel Bandeira

 


Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . .
— Respire.
…………………………………………………………………………………………………………………………………..
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

publicado por blogdobesnos às 23:40

Carlos Drummond de Andrade

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar… as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.

publicado por blogdobesnos às 23:14

Escrito, escreva, escrevo, escravo, ex-cravo da tua flor que exala, que doira, que mortifica meus desejos expansivos, se expondo ante as tuas vontades, desígnios, volutas, voluptuosas curvas de mel mascavo aroma da tua pele em olhos de princesa, andas engastando tua poesia nas pedras em que pisas e nelas em mim, tua criatura, teu ser envolvido nos teus balsâmicos braços de morena, acetinada pele, ali eu, aqui eu, acolá talvez onde desejares que eu esteja, que eu te encontre, que eu me esconda, envolto talvez em nada, numa miríade de pontos que me circundem e me mostrem que talvez tua vontade não me queira mais nem que eu esteja envolto em ouro, pedras preciosas, augustas pratas ou em cores de argenta, Argentina, mar del plata, foi lá que te conheci, mar del plata, foi lá que nos encontramos, e talvez ainda fosse melhor se tal predestinação se desse ao findar a noite, talvez devêssemos ter nos visto pela primeira vez em puerto madero, mas não, foi ali, em mar del plata que pus em ti meus olhos pela primeira vez, e foi ali também que, me olhando me pusestes dentro da tua alma, me esvaziando, me deixando oco e imprestável de mim mesmo, como uma toada que se canta no entardecer para homenagear a luz da lua.

 

E foi assim, e foi tão desse jeito que eu te conheci e que me tomastes como um adulto conduz uma criança, pedagogia que conduz os infantes e foi assim que me conduzistes através dos teus olhos e do teu respirar; fiquei então sem jeito, sem graça, sem atitude e todas as minhas antigas experiências, minhas cavalgadas de potro se tornaram assim, lentas e sem sentido e não mais poderia contar nenhuma das minhas aventuras, das minhas falsidades, dos meus meneios de sedução, pois que todos eles eram, para ti, meras fantasias, brincadeiras, jogos de criança, simples entretenimento passível antes de comiseração, antes de curiosidade do que uma endemia, do que a paixão que vulgarmente despertava nas mulheres que possuía e que brincava de esconde-esconde, de jogo de gato e rato, de míseras tragédias edulcoradas, e por isso, e talvez só por isso teu sorriso me encontrava assim, tão vazio, tão oco, tão sem sentido, pois reconhecias em mim o que de mim mesmo buscava ocultar, e sempre busquei, de modo tão ingênuo quanto bem elaborado, mas tudo ingenuidades, as quais depositei em teus pés como delicadas prendas que, inobstante, amassasses com o teu pisar, como quem quisesse enfim dizer livra-te disso tudo, nada me impressiona mais, nada que disseres terá o dom de me seduzir, senão, sobretudo tu mesmo, e eu fiquei pleno de alegria como a lua que preenche o escuro da noite, e, inseguro de minha próxima solidão, vasculhei em mim uma flor que te pudesse ofertar, mas já não era mais flores que querias, e todas que havia já as conhecera, pois no teu olhar furta-cor já encarceraras toda minha alma num átimo, num zás dentro de ti.

 

E assim que agora não olhas mais a mim, pois que já pouco te importo, mas apenas a minha alma, e suas decomposições, e suas mesmices e suas insalubridades que não posso mais esconder, que não pretendo mais alienar de teu conhecimento, tu que me sabes como o mago conhece os encantamentos, como os ventos guiam as nuvens, como os dias se sucedem de modo tão temporal, e nada mais te faz tão íntima de mim do que a tua própria vontade de, em me vendo, decidir por ignorar-me ou por trazer-me junto ao teu espírito, convencida, e com toda razão, de que nada mais posso fazer senão agregar-me a ti como quem, em desespero, firma a mão em um pedaço de barco, buscando não afogar-se, buscando fugir ao movimento do mar, ao seu vaivém que sentencia momentos de intensa agonia, e assim aguardo em ti talvez minha redenção, menos ainda meus apelos, para tua presença que desvenda a minha, que me cala, que me torna assim tão absolutamente amorável e sem qualquer trava de ressentimentos. Estou em ti estampado como uma carta escrita de coração aos filhos, como uma declaração que se faz sem qualquer desejo que não seja o que a alma expressa, aguardo por ti assim como quem faz um movimento, uma braçada em direção ao outro lado da margem, da represa, do lago, do oceano, eu, totalmente nu enfrentando, talvez, as divergências das correntezas que me jogam para cá, para lá, que querem a toda vontade derrubar-me de meus desejos, de minhas vontades, mas mesmo assim, cá estou eu, aguardando por ti.

Talvez como o sol aguarde, sem dúvida, a primavera.

publicado por blogdobesnos às 15:06

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